Stuck in Baltimore: Os filibusteiros
Decidi abrir minha estadia aqui no "Stuck in Sac" com um post sobre certos acontecimentos que ficam escondidos nessa novela que é o emaranhado político do dia-a-dia. Pouca gente tem saco de ler todos os detalhes e, muitas vezes, eventos fundamentais acabam ocorrendo bem debaixo dos nossos narizes (graças ao sorrateirismo e a famosa "lenga-lenga" dos políticos). Até fiquei na dúvida se deveria começar com a guerra do filibuster, pois, além de enrolada, não sei ao certo o quanto tem se falado sobre isso fora dos EUA. Vocês me dirão se vale a pena, aqui vai.
O filibuster é uma medida legislativa controversa. Tem sido bastante usada no âmbito político americano, principalmente no Senado, onde um lado partidário evita um assunto espinhoso através de táticas que atrasem um debate (ou uma votação) em questão. Geralmente isso ocorre quando um senador inicia um discurso e não pára mais, atrasando a agenda da casa (o que muitas vezes vara dias e noites). A história do filibuster merece uma lida porque, além de contar casos hilários, demonstra como a medida já foi usada por vários lados ideológicos e por diversas razões.
O problema em foco, atualmente, é a nominação judicial de certos advogados e juízes indicados por Bush (alguns pra lá de conservadores) e o controle pela "alma" da Suprema Corte americana, que está pra abrir algumas vagas (onde leis fundamentais que regem o país são estudadas e/ou modificadas). É notório que existe uma preparação reacionária para assaltar Roe vs. Wade, o evento jurídico que legalizou o aborto nos EUA, além de quererem detonar várias outras questões de direitos humanos na mira de grupos como a direita radical e os religiosos. Já que os Republicanos detém a maioria do Senado, a única chance que os Democratas tem de evitar desatinos é através do filibuster. A tática funcionou tão bem (abusivamente, segundo a Casa Branca) que os Republicanos ameaçaram inventar a chamada 'nuclear option', que elimina essa manobra e praticamente força o Senado a aceitar goela abaixo os indicados de Bush.
E porque isso é importante? Porque um grupo de 7 senadores Republicanos e 7 Democratas resolveram se juntar e formar um consenso, onde os Democratas aceitam certas nominações enquanto que os Republicanos desistem de implementar a 'opção nuclear'. As ramificações são várias:
- Os líderes dos Democratas (Harry Reid) e Republicanos (Bill Frist) ficaram de fora nessa negociação. Esta é a primeira tentativa real de desmontar a divisão extrema em que se encontra a política e o país, e está sendo feita através do centro e sem consultar as lideranças políticas. O que vai acontecer com o acordo em si e estes 14 senadores (a chamada "gangue dos 14"), será um indicativo se isso ainda é possível num ambiente onde discordar de alguém automaticamente te transforma em inimigo.
- O evento é um medidor de candidatos à presidente dos EUA em 2008. Tanto pelos envolvidos no acordo (John McCain, particularmente) quanto pelos que ficaram de fora (Frist, George Allen e, possivelmente, o próprio Reid). Todos os 14 senadores correm o risco de serem estraçalhados pela mídia e pelos extremos ideológicos (como já está acontecendo na blogosfera americana), que hoje dominam cada vez mais o mainstream estadunidense. Ou seja, pode tanto ser um suicídio político quanto um às na manga, a ser usado daqui à 2 anos.
- O tiro pode sair pela culatra para os dois partidos. As vantagens para os Republicanos são imediatas: Priscilla Owen e outros dois candidatos judiciais controversos serão efetivados (Owen foi bloqueada por filibusters por 4 anos). De tabela, o sinistro John Bolton poderá ser confirmado como embaixador americano na ONU. Pode se dizer que os Democratas tiveram que ceder mais do que queriam e não há garantias de que a 'opção nuclear' não volte à cena. Por outro lado, o acordo enfraquece a direita mais conservadora do partido e manda uma mensagem à Casa Branca de que o consenso (leia-se "chave de braço") estabelecido pelo Executivo não é tão firme assim.
- A medida também mede a dependência dos dois partidos em relação aos 'interesses externos' ('special interests', como se diz aqui). Por interesses externos, leia-se grandes corporações, sindicatos, extremistas religiosos, Wall Street, grupos pró e contra o aborto e por aí vai. Em particular, o líder dos Republicanos no Senado, Bill Frist, está numa sinuca de bico. Tendo se atrelado aos conservadores religiosos, Frist depende desesperadamente do apoio daqueles que são contra o aborto, contra certas medidas anti-AIDS, contra a pesquisa que envolva embriões humanos e contra o direito ao fim de vida planejado. Estes grupos querem porque querem que o filibuster "morra", para que mais juízes conservadores entrem em posições onde possam incluir tal agenda. Em uma certa entrevista televisiva, Frist se embananou todo ao evitar em condenar certos grupos financiados pela Casa Branca que insistem em dizer que a AIDS pode ser transmitida através de lágrimas. O caso é grave, pois Frist já foi médico e sabe o quão confusas e distorcidas são tais afirmações. Se o pacto morrer, poderá ser uma vitória de tais interesses.
- Finalmente, essa trégua medirá o que o país quer dos seus legisladores: o confronto direto ou o consenso político. Também mede importantes decisões filosóficas. O que vale mais a pena: os ganhos imediatos ou a manutenção de regras que defendam as minorias políticas (independentemente de qual sejam estas)? Até porque hoje os Republicanos estão por cima, mas isso não acontecerá sempre. Por último, é um teste de força para a Casa Branca e para os Democratas (estes são hoje em dia uma minoria cada vez mais acuada em várias frentes). E isso é apenas o começo.
by Fernando.
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